Como amplamente divulgado à época, a Receita Federal editou a Instrução Normativa RFB 1.862, de 27/12/2018, pela qual criou a figura do Termo de Imputação de Responsabilidade (TIR), aplicável às hipóteses em que constatada a pluralidade de sujeitos passivos.
Com isso, atribui-se ao auditor fiscal da Receita a forma para inclusão de sujeitos passivos durante o curso do processo administrativo fiscal. Há, ainda, previsão para formalização de imputação de responsabilidade mesmo após o encerramento do processo (artigo 15, da IN), até o momento que precede a inscrição em Dívida Ativa, hipótese em que não será possível discutir o objeto da cobrança, mas tão somente a inexistência de responsabilidade.
Até então, a matéria de imputação de responsabilidade no processo administrativo fiscal, decorrente da constatação de pluralidade de sujeitos passivos, era disciplinada pela Portaria RFB 2.284/10, que previa momento único para tal prática, mais especificamente, por ocasião da “formalização da exigência” (artigo 2º[1]), em linha com o artigo 142, do CTN.
Diante desse novo cenário normativo, caso não indicados, de início, todos os sujeitos passivos a compor o lançamento, cabe ao auditor fiscal, frente a informações de pluralidades de sujeitos passivos, instaurar o TIR para que a imputação de responsabilidade ocorra durante ou ao término do processo administrativo fiscal.
O mote trazido pela IN RFB 1.862/18 para instauração do TIR durante o curso do processo administrativo fiscal ou ao seu término é a existência “de fatos novos ou subtraídos ao conhecimento do Auditor-Fiscal” (artigo 11 e artigo 15, parágrafo 2º).
Certo é que as disposições trazidas pela IN 1.862/18 foram muito criticadas, não só pela inadequação da IN para inaugurar temas nela veiculados, mas, ainda que colocado em prática seu conteúdo, pelo grau de subjetividade que envolve o contexto de “fatos novos ou subtraídos ao conhecimento do Auditor-Fiscal”.
A despeito dessas impropriedades, busca-se avaliar as disposições da IN 1.862/18 sob viés favorável aos contribuintes, tendente a garantir o cancelamento da CDA caso não cumprido o papel designado ao auditor fiscal a partir de tal normativo.
Tal premissa se aplica caso existam fatos de conhecimento da Receita Federal — já à época do processo administrativo fiscal — que não tenham sido levados a efeito para instauração do TIR, mas que, posteriormente, venham a ser arguidos na esfera judicial como fundamento para o redirecionamento da cobrança.
Como exemplo, tomemos situação em que determinada pessoa física é tida por responsável em decorrência de redirecionamento da cobrança executiva por força do artigo 135, III, do CTN. Ou, pessoa jurídica, tida por responsável em redirecionamento pautado no artigo 133, I, também do CTN.
Nessas hipóteses, caso os fatos trazidos para amparar tais redirecionamentos na esfera judicial já tivessem ocorrido à época do processo administrativo fiscal, tem-se configurada a nulidade da inscrição da CDA, na medida em que não poderia ter sido suprimida a instauração do TIR.
Importante frisar que, em todas as passagens da IN 1.862/18, a instauração do TIR é tratada como impositiva ao auditor fiscal, não como mera faculdade. Confira-se:
“Art. 2º O Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil que identificar hipótese de pluralidade de sujeitos passivos na execução de procedimento fiscal relativo a tributos administrados pela RFB deverá formalizar a imputação de responsabilidade tributária no lançamento de ofício. (...)
Art. 4º Todos os sujeitos passivos autuados deverão ser cientificados do auto de infração, com abertura do prazo estabelecido no inciso V do art. 10 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, para que a exigência seja cumprida ou para que cada um deles apresente impugnação. (...)
Art. 12. Caso o processo administrativo fiscal esteja pendente de julgamento em primeira instância, será emitido Termo de Devolução de Processo para Imputação de Responsabilidade por Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, que será anexado ao processo. (...)
Art. 15. Nos casos em que o crédito tributário definitivamente constituído não seja extinto, o Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil que identificar hipóteses de pluralidade de sujeitos passivos previamente ao encaminhamento para inscrição em dívida ativa deverá formalizar a imputação de responsabilidade tributária mediante Termo de Imputação de Responsabilidade Tributária, o qual observará o disposto no art. 3º”. (grifos nossos)
Não há dúvidas, portanto, de que, havendo fatos que dão azo à inclusão de sujeitos passivos na demanda administrativa (leia-se: sucessores, terceiros, responsáveis solidários), a instauração do Termo de Imputação de Responsabilidade trazida pela IN 1.862/18 é cogente.
Há de se ponderar que, via de regra, a jurisprudência dos tribunais pátrios afasta o reconhecimento de nulidade dos trabalhos fiscais caso inexista cerceamento ao direito de defesa ou prejuízo ao contribuinte.
No cenário ora avaliado, no entanto, é indiscutível a existência de cerceamento de defesa e prejuízo à pessoa física ou jurídica que vem a sofrer o redirecionamento da cobrança na esfera judicial, na medida em que, descumprido o quanto disposto na IN RFB 1.862/18 (leia-se: fatos que amparam o redirecionamento são anteriores ou contemporâneos ao processo administrativo fiscal), tem-se suprimido indevidamente o contraditório perante a esfera administrativa, restando ao redirecionado todos os percalços atinentes à via de execução fiscal, tal como constituição de advogado, garantia integral da cobrança, dentre outros.
É importante frisar que a IN RFB 1.862/18, a rigor, vem prestigiar a jurisprudência pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça, que ensejou a edição da Súmula 392 (“A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução” — grifos nossos).
Ou seja, todas as providências para identificação do potencial devedor devem ser adotadas perante a via administrativa, caso, evidentemente, os fatos concernentes a tal imputação de responsabilidade já tenham ocorridos à época ou até o momento que precede a inscrição em Dívida Ativa.
Passado esse momento, não se pode “sanear” a CDA em decorrência de fatos que já existiam à época e eram de inteiro acesso da autoridade fiscal.
Por fim, surge a dúvida a respeito do marco a ser considerado para aferir a instauração do TIR: do momento em que ocorre o fato ou do momento em que a autoridade fiscal alega dele ter conhecimento.
Salvo situações em que se nota a intenção de ocultar informações à autoridade fiscal, entende-se que o marco à instauração do TIR deve ser interpretado como a data da ocorrência do fato que se toma por ensejador de responsabilidade, não do momento em que a autoridade fiscal alega ter dele tomado conhecimento.
Tal premissa encontra amparo no quanto recentemente definido pelo Superior Tribunal de Justiça em demanda repetitiva (REsp 1.201.993/SP), cuja matéria é correlata à presente (prescrição intercorrente para redirecionamento de execução fiscal).
Inicialmente, na proposta de tese apresentada pelo relator, ministro Herman Benjamin, o prazo de cinco anos deveria ser contado a partir do momento em que a Fazenda Pública tem ciência do fato que enseja o redirecionamento. A ministra Regina Helena Costa, por sua vez, propôs tese no sentido de que a contagem se inicie na data do fato.
Defendeu tal premissa ao afirmar que “tem de haver um marco objetivo no processo”. “Não me parece que se possa estabelecer como marco inicial algo que ficará a critério da Fazenda. Não pode ficar na mão dela dizer quando houve ciência inequívoca.”[2] Após as adaptações de voto pelo relator, a ministra acompanhou o entendimento por ocasião do julgamento que definiu a tese a ser adotada.
Ainda se aguarda a formalização do acórdão, mas entendimento adotado pelo STJ, em demanda repetitiva, já norteia a interpretação a respeito do marco a ser adotado para aplicação da IN RFB 1.862/18.
Diante das considerações acima, nota-se que a IN RFB 1.826/18, ainda que tenha veiculado disposições que se entendem impróprias a essa via normativa, é certo que tais disposições representam “via de mão dupla”, pois, conquanto tragam efeitos indesejáveis aos contribuintes, ao viabilizar a inclusão de sujeitos no decorrer do processo administrativo, estabelece obrigação ao auditor fiscal que tende a irradiar efeitos de nulidade à cobrança em determinadas hipóteses.
[1] Art. 2º Os Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, na formalização da exigência, deverão, sempre que, no procedimento de constituição do crédito tributário, identificarem hipóteses de pluralidade de sujeitos passivos, reunir as provas necessárias para a caracterização dos responsáveis pela satisfação do crédito tributário lançado.
[2] Fonte: https://www.valor.com.br/legislacao/6234809/stj-esta-perto-de-definir-contagem-de-prescricao-de-execucao-fiscal.
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André Fernando Vasconcelos de Castro é advogado, coordenador do Departamento Jurídico Tributário do Grupo JBS, pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-SP, MBA em Gestão Tributária pela Universidade de São Paulo (USP) e especializado em Tributação do Agronegócio pela FGV-SP. Membro da Comissão Especial de Contencioso Administrativo Tributário da OAB-SP.