Entre as mudanças tributárias em estudo pela equipe econômica do governo federal, uma relacionada ao Imposto de Renda (IR) das pessoas jurídicas causa polêmica comparável à promessa de reativar a contribuição sobre movimentação financeira. A proposta de criar uma base de cálculo do IR partindo de um novo conceito de “resultado fiscal” – e não partindo do lucro contábil, como é hoje – tem deixado apreensivos representantes de empresas e tributaristas.
A ideia da Receita é cobrar o IRPJ sobre um lucro cujo cálculo deixa de lado as regras contábeis do IFRS – sigla em inglês de Normas Internacionais de Informação Financeira -, adotado no Brasil desde 2008. A Receita diz que a série de ajustes que as companhias precisam fazer no lucro contábil para se chegar à base sobre a qual é calculado o IR causa divergências entre Fisco e contribuinte, o que eleva o contencioso. Segundo a Receita, as adaptações decorrentes dos critérios do IFRS correspondem a 63% do total dos ajustes previstos na legislação do IRPJ.
A proposta da Receita defende que o cálculo seja feito sobre um lucro real apurado com base em novo conceito de resultado fiscal, que viria da diferença entre receitas e deduções fiscais. Segundo a Receita, a mudança não traria aumento de carga tributária às empresas e reduziria litígios, custo Brasil, instabilidade de normas e volume de obrigações acessórias. Estados Unidos e Reino Unido, indica a Receita, adotam sistemática semelhante.
A mudança não foi apresentada formalmente em projeto de lei ou emenda, mas tem sido mencionada pelo secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, em apresentações públicas sobre a proposta de reforma tributária do governo. Paralelamente, a proposta tem sido apresentada a representantes do setor privado por técnicos da Receita.
“O que vamos fazer na proposta é nos distanciar dos conceitos das regras contábeis internacionais e adotar princípios que tornarão mais simples e mais objetivos os critérios para apuração do lucro tributável das empresas”, declarou Cintra há cerca de duas semanas em palestra na Associação Comercial de São Paulo.
“Não é que a proposta se afasta para calcular o IR. Ela abandona o IFRS”, avalia Alfried Plöger, presidente do conselho diretor da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca). Para ele, a proposta da Receita tornará o cálculo do IR mais complicado. “E há o grande temor, justo, de que vamos pagar mais impostos”, diz ele. “Claramente não há aprovação das empresas”, declara, destacando que a Abrasca é contra o proposta.
Ele diz, porém, que apesar das resistências já manifestadas, a Receita caminha com o projeto. O Fisco solicitou que algumas empresas participem de um piloto para testar o modelo. Segundo Plöger, 13 companhias se voluntariaram e a Abrasca já passou o nome de algumas. “Deverão ser três ou quatro para o piloto, no máximo cinco.”
Durante palestra este mês em São Paulo, Cintra disse que as várias regras contábeis internacionais às quais o Brasil aderiu criam “fenômenos absolutamente esdrúxulos para qualquer economista”. As empresas, alegou, são obrigadas a fazer ajustes entre o lucro contábil apurado e o lucro tributário que será a base do IR, em procedimento “extremamente complexo, difícil e interpretativo”. Nas regras contábeis, declarou, há o conceito do valor justo, que os economistas discutem “há 500 anos”. “Então quando se apresenta conceitos como esse evidentemente o fator interpretativo vem.” A Receita e o contribuinte, disse, têm interpretações distintas, o que gera “contenciosos gigantescos”.
“Hoje temos R$ 700 bilhões sendo discutidos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais [Carf] e uma dívida ativa com outros R$ 3 trilhões em discussão”, apontou o secretário. “Isso é gerado pela falta de objetividade de regras e a adoção das regras contábeis internacionais agrava sobremaneira esse problema”, disse Cintra.
Everardo Maciel, sócio da Logus Consultoria e ex-secretário da Receita Federal, diz que não conhece a atual proposta de mudança de cálculo do IR das empresas, mas concorda com a análise de que a adoção do IFRS tornou a apuração do imposto mais complexa, com elevação dos encargos para os contribuintes. Everardo diz que, em tese, é necessário afastar a legislação de cálculo do IR das complicações trazidas pelo IFRS.
O tributarista Edison Fernandes, sócio da FF Advogados, tem opinião diferente. Para ele, a complexidade não vem da adoção do IFRS. “É a economia que está se tornando mais complexa e a contabilidade somente reflete isso. Várias discussões tributárias existem independentemente da contabilidade. Não adianta culpar o mensageiro.” Para Fernandes, a solução não é afastar a legislação do IR das regras contábeis, mas sim aproximá-las. O grupo de estudos de direito e contabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGV), diz, deve apresentar em setembro uma proposta à Receita nesse sentido.
Há apreensão entre as empresas porque houve investimento para a adoção dos atuais padrões, diz Fernandes. Para ele, a proposta da Receita não simplifica, já que as empresas continuarão a ter um lucro apurado contabilmente e outro para fins tributários. As empresas precisam manter demonstrativos nos padrões adotados para atrair investidores e também ter acesso a crédito, salienta Fernandes.
Uma preocupação, diz Eduardo Fleury, sócio do FCR Law, é em relação à insegurança jurídica que a mudança pode trazer. No momento em que se desvincula a legislação tributária do IFRS, argumenta Fleury, perde-se a referência das normas contábeis. “O grande problema é serem criados novos conceitos, porque na contabilidade temos um ciência muito clara do que é receita e despesa.”
“E para a partir disso a legislação tributária cobrar o que quiser é um pulo”, concorda Edison Fernandes. Idésio Coelho, vice-presidente do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), tem receio semelhante. “Não faz sentido as empresas terem o resultado apurado de forma discricionária, determinada pela Receita. A contabilidade deve ser a única fonte de avaliação da renda de uma entidade, para todos os fins.” Ele destaca que o CFC é “radicalmente contra” a proposta.