O sistema tributário nacional tal qual existe hoje está em xeque. Tramitam atualmente no Congresso Nacional pelo menos duas propostas de emendas constitucionais que modificam de maneira significativa o modelo de tributação no país, especialmente com relação aos tributos sobre consumo (indiretos). Todavia, paralelamente a isso, a Receita Federal do Brasil sinaliza a proposição pelo Poder Executivo de um projeto definido como uma “nova visão para o IRPJ com base no Lucro Real”.
Pelo que se noticiou desse projeto, a principal motivação das alterações decorrentes dessa nova visão seria atenuar os efeitos do processo de integração das normas contábeis internacionais com a legislação tributária brasileira. Nesse contexto, a proposta da Receita Federal visa reduzir as complexidades na apuração dos tributos trazidas pelas novas normas contábeis, dotadas de alto grau de subjetividade.
Tais normas, segundo a RFB, acarretam uma quantidade excessiva de ajustes (adições e exclusões) ao lucro real, base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica aplicável aos grandes contribuintes do país.
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Para compreendermos essas premissas, todavia, faz-se necessário voltarmos alguns anos no tempo. O processo de harmonização das normas contábeis brasileiras com os padrões internacionais de contabilidade (o chamado IFRS) teve início em 2007 com o advento da Lei n. 11.638/2007, impulsionado, à época, pela intenção do governo na obtenção pelo Brasil do grau investimento no mercado internacional. Em seguida, a opção do Poder Executivo materializada com a MP 449/2008, posteriormente, convalidada pelo Legislativo com a Lei n. 11.941/2009, foi a criação de um regime de transição (RTT), no qual foi assegurada ao contribuinte a neutralidade dos efeitos da referida harmonização na apuração do IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
Avançando no tempo, vale lembrar que o RTT foi extinto pela Lei n. 12.973/2014, dispositivo que regulou o tratamento tributário de todas as normas contábeis emitidas até então e determinou a neutralidade de todas as normas contábeis a serem emitidas a partir do seu advento, criando, portanto, um novo regime de transição. A neutralidade é materializada por meio dos ajustes de adições e exclusões ao lucro real, cujo ponto de partida, na legislação atual, é o lucro contábil apurado pelas normas em vigor. Daí vem a afirmação de que as normas contábeis aumentam a complexidade na apuração dos tributos.
Interessante observar que todo esse cenário acabou por criar um novo e curioso paradigma: o Fisco passou a ter que analisar todos os novos pronunciamentos contábeis a fim de fiscalizar os contribuintes, bem como planejar novas regras tributárias para o tratamento dos efeitos delas decorrentes. Assim, com o constante processo de harmonização contábil não só o contribuinte, mas o Fisco também, passou a ter que lidar com uma quantidade considerável de regras novas sendo produzidas reiteradamente.
Manifestamente contrária a esse novo quadro, a Receita Federal do Brasil apresentou a proposta que contempla a criação de um resultado fiscal baseado no regime de competência, apurado em função de receitas fiscais e despesas fiscais, fundamentadas em conceitos principiológicos e em rol não exaustivo. Exemplo disso seria o tratamento de bens tangíveis e intangíveis, que estariam sujeitos à realização fiscal (em oposição à atual depreciação/amortização/exaustão), calculada em função de tabela da RFB sobre os valores fiscais. Nesse sentido, não haveria ajustes de adição e exclusão ao lucro real, uma vez que o ponto de partida da apuração dos tributos não mais seria o lucro contábil, e sim receitas e despesas pré-determinadas pela legislação tributária.
Em que pese seja louvável a intenção de simplificação da proposta apresentada, nos parece que o distanciamento da apuração dos tributos do lucro apurado pela contabilidade apresenta mais desvantagens do que as vantagens a serem obtidas.
Com efeito, há um trade-off natural decorrente da utilização do lucro contábil como ponto de partida para o cálculo do IRPJ e da CSLL. O reconhecimento de uma determinada receita baseada nos princípios contábeis, ao mesmo tempo em que garante à empresa a apuração de um resultado (e potencialmente ao acionista o dividendo correspondente), gera, em regra, a obrigação de um sacrifício patrimonial ao Estado na forma do pagamento dos tributos. A alteração dessa premissa pode gerar um desequilíbrio significativo na relação entre os contribuintes e a fiscalização.
A quebra da vinculação direta gera fortes receios de que os critérios a serem aceitos pelas autoridades fiscais para o reconhecimento de despesas fiscais tendam a ser mais restritivos, ao mesmo tempo em que os critérios para a obrigatoriedade do reconhecimento de receitas fiscais seriam mais amplos do que aqueles determinados atualmente pelas normas contábeis. Essas tendências podem fazer com que o lucro fiscal se mostre maior do que o lucro contábil.
Ademais, a suposta redução da complexidade pode ser apenas aparente. Em recentes manifestações de seus representantes, a Receita Federal vem afirmando categoricamente que a nova visão do lucro real não acarretará o surgimento de uma contabilidade tributária para os contribuintes em adição à atual contabilidade societária. Entretanto, é quase consenso entre os estudiosos e participantes do mercado que a implementação do projeto sem a criação de um novo livro (ou escrituração específica) não seria factível.
Portanto, a nova visão do lucro real, pelo menos tal qual apresentada pela Receita Federal do Brasil até o momento, não parece apresentar de maneira clara como a simplificação pretendida irá ser percebida pelos contribuintes. Assim, a despeito da prevalência da reforma tributária dos tributos sobre consumo nos holofotes do Congresso e da imprensa, é importante a ampliação do debate acerca dessa proposta a fim de evitarmos que a nova visão do lucro real seja a de um lucro tributável maior do que a renda efetivamente auferida pelos contribuintes, que corresponde à verdadeira materialidade do imposto, nos termos da Constituição Federal.